quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Exame de Ordem é constitucional

O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou nesta quarta-feira o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), prova que confere aos bacharéis em direito o registro de advogado, constitucional. Em julgamento do recurso extraordinário do bacharel em direito João Volante, de 56 anos, que pedia o direito de advogar sem a aprovação no exame, oito ministros já votaram em favor do exame.
 
O relator do caso, ministro Marco Aurélio Mello, negou o recurso e explicou sua posição por mais de uma hora e meia. Ele rebateu um dos argumentos de Volante, de que o "exame não pode ser considerado só por si como qualificação profissional". "Qualificar-se não é apenas se submeter a sessões de teorias e técnicas, mas sujeitar-se aos testes. Se a prova não qualifica, as da faculdade também não. Elas seriam inconstitucionais?", questionou.
  
Para o ministro, o exame serve "perfeitamente" à função de avaliar se o bacharel tem condições mínimas para exercício da advocacia. "O perigo de dano da advocacia sem conhecimento serve para restringir liberdade de profissão? A resposta é positiva."
 
O ministro Luiz Fux, o mais novo no Supremo, seguiu o voto do relator e também negou o recurso. “Não se pode admitir que a atuação desqualificada aconteça para depois fiscalizar”, declarou Fux. O ministro destacou que é por intermédio do Exame de Ordem que se certifica que o bacharel está apto para o exercício da advocacia. “Apesar dos problemas do exame hoje não se pode falar em insconstitucionalidade.”
 
José Antônio Dias Toffoli seguiu o voto do relator sem mais comentários. A ministra Cármen Lucia afirmou que a OAB deve atualizar a forma de avaliar os bacharéis, "porque o direito muda" e também votou contra o recurso. Ricardo Lewandowski também votou junto com "o marvilhoso e irretocável voto do relator".
 
O ministro Carlos Ayres Britto afirmou que “a faculdade dá o direito ao diploma de bacharel. Para alcançar o plus é preciso o Exame de Ordem”. Na sequencia, Gilmar Mendes também defendeu “certa abertura social” para outros setores participarem da prova, mas negou provimento. “É da tradição brasileira e mundial que a formação em direito seja diferente da de advogado”, explicou.
 
O ministro Celso de Mello disse que desde o início do século 20 a corte já deixou claro que regulamentar uma profissão significa restringir. "Não é, portanto, qualquer profissão que se expõe a possibilidade constitucional de intervenção regulativa do Estado, pelo contrário. Vê-se pois que profissões, empregos ou ofícios que não façam instaurar perigos à vida, à saúde, à propriedade ou à segurança de terceiros não têm necessidade de requisitos mínimos. Isso já é mostrado aqui desde a década de 10 e 20 do século passado assim como recentemente, em pleno terceiro milênio, quando votada a regulamentação da profissão de jornalista.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

CASAMENTO HOMOAFETIVO

Rio Grande do Sul tem casamento entre duas mulheres
 
13/10/2011 | Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM
 
Depois de um ano e seis meses de união estável, duas mulheres do Rio Grande do Sul conseguiram converter a união em casamento. A decisão foi da 2ª Vara Cível de Soledade, do Rio Grande do Sul.

Segundo Delma Silveira Ibias, presidente da regional Rio Grande do Sul do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM/RS), "essa decisão é um avanço para o Direito de Família, pois todos merecem ter o mesmo tratamento. O Instituto já defendia, há muito tempo, a igualdade entre os sexos e agora tivemos mais esse reconhecimento. Outros casais homoafetivos vão querer regularizar suas situações, essa decisão é a primeira de muitas". Delma afirma que uma das requerentes passou a incorporar o sobrenome da companheira em seu nome e o regime do casamento foi comunhão parcial de bens.

O juiz José Pedro Guimarães se baseou na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu em maio deste ano a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. A partir dessa data, casais homoafetivos tiveram vários direitos assegurados como herança, pensão alimentícia, dentre outros.

Para marcar essa conquista, a oficial de registro civil de Soledade, Joana D'Arc de Moraes Malheiros, entregou à presidente do IBDFAM/RS uma cópia do primeiro pedido de conversão de união estável homoafetiva em casamento.

Tema de Congresso -
Para falar sobre o "Estatuto da Diversidade Sexual e as políticas inclusivas", o VIII Congresso Brasileiro de Família reunirá a advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente nacional do IBDFAM, o presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Toni Reis, e Walkiria La Roche, da Coordenadoria Especial de Políticas de Diversidade Sexual do Estado de Minas Gerais, no dia 15 de novembro, às 14 horas . O VIII Congresso será realizado entre os dias 13 e 16 de novembro, em Belo Horizonte. Inscreva-se em www.ibdfam.org.br/congresso.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

SANGUE VERSUS AFETO

Ação anulatória de Registro de Nascimento. Anseio do pai genético em ver revista a qualificação paterna no Registro da Criança
 
Tribunal Julgador: TJMG
 
Número do processo: 1.0624.06.010781-7/001(1)  Númeração Única: 0107817-53.2006.8.13.0624 
Processos associados: clique para pesquisar 
Relator:  Des.(a) VANESSA VERDOLIM HUDSON ANDRADE 
Relator do Acórdão:  Des.(a) VANESSA VERDOLIM HUDSON ANDRADE
Data do Julgamento:  30/08/2011
Data da Publicação:  23/09/2011 
Inteiro Teor:    

EMENTA: AÇÃO ANULATÓRIA DE REGISTRO DE NASCIMENTO - ANSEIO DO PAI GENÉTICO EM VER REVISTA A QUALIFICAÇÃO PATERNA NO REGISTRO DA CRIANÇA - ESTUDO SOCIAL - DEMONSTRAÇÃO DE EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO PATERNO-FILIAL ENTRE O PAI SÓCIO-AFETIVO E A CRIANÇA - PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DA MENOR - PROVIMENTO NEGADO. A filiação sócio-afetiva é aquela em que se desenvolvem durante o tempo do convívio, laços de afeição e identidade pessoal, familiares e morais. À luz do princípio da dignidade humana, bem como do direito fundamental da criança e do adolescente à convivência familiar, traduz-se ser mais relevante a idéia de paternidade responsável, afetiva e solidária, do que a ligação exclusivamente sanguínea. O interesse da criança deve estar em primeiro lugar, uma vez que é inegável que em casos de convivência habitual e duradoura com pessoas estranhas ao parentesco, o menor adquire vínculos de confiança, amor e afetividade em relação a estas pessoas. Esse vínculo não pode ser destruído por terceiro, mesmo que com base em laços sanguineos, se afronta os interesses da criança, colocando-a em situação de instabilidade e insegurança jurídica e emocional.

APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0624.06.010781-7/001 - COMARCA DE SÃO JOÃO DA PONTE - APELANTE(S): W.C.S.S. - APELADO(A)(S): I.L.P. E OUTRO(A)(S) - RELATORA: EXMª. SRª. DESª. VANESSA VERDOLIM HUDSON ANDRADE

ACÓRDÃO

(SEGREDO DE JUSTIÇA)

Vistos etc., acorda, em Turma, a 1ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sob a Presidência do Desembargador EDUARDO ANDRADE , incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

Belo Horizonte, 30 de agosto de 2011.

DESª. VANESSA VERDOLIM HUDSON ANDRADE - Relatora

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

A SRª. DESª. VANESSA VERDOLIM HUDSON ANDRADE:

VOTO

Trata-se de recurso de apelação proposto à f. 79/83 por W. C. S. S, nos autos da ação Anulatória de Registro de Nascimento movida em face de I. L. P, M. C. P e M. H. C. P, no intuito de reformar a sentença de f. 75/77, que julgou improcedente o pedido inicial, nos termos do art. 269, I do CPC, ressaltando que deve-se privilegiar a paternidade afetiva sobre a biológica, uma vez que a menor não tem qualquer contato com o requerente e que ela está completamente adaptada ao meio em que vive.

Nas suas razões recursais, o apelante alega que o requerido agiu de forma ilegal e imoral ao registrar a criança mesmo sabendo que ela era filha do recorrente, fato comprovado pelo exame de DNA juntado nos autos. Assevera que a parte apelada teria sido incoerente no decorrer do processo, tentado por vezes ludibriar a Justiça, uma vez que restou demonstrado que o requerido tinha consciência de que a menor não era sua filha biológica desde o princípio da gestação. Afirma que em decorrência disso, deve o registro da criança ser anulado, por ter se caracterizado um vício insanável. Salienta por fim que houve falsidade no registro da criança, não estando ela apta a produzir qualquer efeito jurídico. Neste viés, requer seja dado provimento ao seu recurso, para reformar a sentença e anular o assentamento da menor.

Em contrarrazões à f. 86/89, alegam os apelados, em síntese, não prosperar as razões do apelante. Afirmam que a criança tem como seu pai o requerido, sendo notável o fato de que o vínculo biológico está cedendo lugar ao sócio-afetivo, pelo que deve ser mantida a r. sentença "a quo".

Conheço do recurso, presentes os pressupostos de admissibilidade.

Inexistindo preliminares, passo ao exame do mérito.

O novo ordenamento jurídico estabeleceu como fundamental o direito à convivência familiar. Faz-se necessário reconhecer que a Constituição Federal legitimou o afeto, emprestando-lhe efeitos jurídicos. A partir daí, o afeto passou a merecer a tutela jurídica tanto nas relações interpessoais como também nos vínculos de filiação. A partir da Constituição de 1988, linhas fundamentais foram regulamentadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e projetaram-se no Código Civil de 2002, dando prevalência à paternidade afetiva e aos interesses primordiais da criança.

Instalada tal situação, em que há conflito entre os interesses do pai registral e afetivo e os do pai biológico, não se pode admitir, em regra, que o pai ou a mãe biológica venha requerer a anulação do registro em que consta outro pai, afrontando o interesse do menor e os princípios da razoabilidade e da segurança jurídica.

O art. 1.603 do Código Civil diz que a filiação se prova pela certidão do termo de nascimento (registro civil), podendo ser de filiação biológica ou não. Bastando apenas a declaração de vontade, sem qualquer demonstração de prova biológica.

A mesma lei infraconstitucional determina ainda, em seu art. 1.593, que:

Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, nos seguintes artigos, disciplina com intensidade os interesses do menor:

Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

A Constituição Federal de 1988 assegura os direitos da criança e do adolescente e ainda ressalta a importância da família por meio dos arts. 227 e 229:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Pode-se considerar a filiação sócio-afetiva como aquela em que se desenvolvem durante o tempo do convívio, laços de afeição e identidade pessoal, familiares e morais, envolvendo a constituição de valores e da singularidade da pessoa.

Esta paternidade é aquela que se sobrepõe aos laços sanguíneos decorrentes das alterações familiares da atualidade: desconstituição das famílias, pai que não assume a paternidade, adoção, entre outros. Na verdade, é aquela em que o pai não biológico passa a tratar a criança, no âmbito de uma família, como filha, criando-a e sendo responsável pela mesma.

Nesse sentido colho definição de Maria Berenice Dias:

"A filiação pode resultar da posse do estado de filho e constitui modalidade de parentesco civil de 'outra origem', isto é, de origem afetiva (CC 1.593). A filiação socioafetiva de manter a estabilidade da família, que cumpre a sua função social, faz com que se atribua um papel secundário à verdade biológica. Revela a Constancia social da relação entre pais e filhos, caracterizando uma paternidade que existe não pelo simples fato biológico ou por força de presunção lega, mas em decorrência de uma convivência afetiva.[...] certamente há um viés ético na consagração da paternidade socioafetiva. Constituído o vinculo da parentalidade, mesmo quando desligado da verdade biológica, prestigia-se a situação que preserva o elo da afetividade. Não é outro o fundamento que veda a desconstituição do registro de nascimento feito de forma espontânea por aquele que, mesmo sabendo ser o pai consangüíneo, tem o filho como seu." (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4.ed., rev.,atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007.)

Em escrito publicado na Revista Brasileira de Direito de Família, encontra-se distinção entre genitor e pai:

"Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Afinal, qual a diferença razoável que deva haver, para fins de atribuição de paternidade, entre o homem dador de esperma, para inseminação heteróloga, e o homem que mantém uma relação sexual ocasional e voluntária com uma mulher, da qual resulta concepção? Tanto em uma como em outra situação, não houve intenção de constituir família. Ao genitor devem ser atribuídas responsabilidades de caráter econômico, para que o ônus de assistência material ao menor seja compartilhado com a genitora(...). Pai é aquele que cuida, educa, ensina, orienta, dá amor e carinho, brinca, leva à escola, etc.(...) A paternidade é múnus, direito-dever, construída na relação afetiva e que assume os deveres de realização dos direitos fundamentais da pessoa em formação à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar" (art. 227 CF). É pai quem assumiu esses deveres, ainda que não seja o genitor." (REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO DE FAMÍLIA nº 01 - O exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana, p. 72).

Nota-se que a Constituição Federal de 1988 adota conceito aberto de paternidade, não permite a confusão entre genitor e pai, ou a primazia da paternidade biológica. Pelo contrário, à luz do princípio da dignidade humana, bem como do direito fundamental da criança e do adolescente à convivência familiar, traduz-se ser mais relevante a idéia de paternidade responsável, afetiva e solidária, do que a ligação exclusivamente sanguínea.

Neste mesmo sentido o STJ já decidiu:

RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO - AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE - INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGÜÍNEA ENTRE AS PARTES - IRRELEVÂNCIA DIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. (...) O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil. O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Recurso conhecido e provido. (STJ - REsp 878941-DF - 3ª Turma - Relª. Minª Nancy Andrighi - Publ. em 17-9-2007)

Há também vasta jurisprudência deste Egrégio Tribunal:

Apelação cível. Ação declaratória. Maternidade socioafetiva. Prevalência sobre a biológica. Reconhecimento. Recurso não provido. 1. O art. 1.593 do Código Civil de 2002 dispõe que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. Assim, há reconhecimento legal de outras espécies de parentesco civil, além da adoção, tais como a paternidade socioafetiva. 2. A parentalidade socioafetiva envolve os aspecto sentimental criado entre parentes não biológicos, pelo ato de convivência, de vontade e de amor e prepondera em relação à biológica. 3. Comprovado o vínculo afetivo durante mais de trinta anos entre a tia já falecida e os sobrinhos órfãos, a maternidade socioafetiva deve ser reconhecida. 4. Apelação conhecida e não provida, mantida a sentença que acolheu a pretensão inicial. (Apelação: 1.0024.07.803827-0/001(1), Relator: Des. (a) CAETANO LEVI LOPES)

AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C PEDIDO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO - RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO ATO IRRETRATÁVEL - RELAÇÃO SOCIOAFETIVA COMPROVADA. SENTENÇA MANTIDA. - A anulação de registro civil de nascimento somente é possível se demonstrada alguma das hipóteses previstas no art. 171 do Código Civil de 2002. - A Lei não autoriza a postulação de declaração de estado ao contrário do que se verifica do registro de nascimento, salvo ocorrendo erro ou falsidade do registro. - Comprovada a socioafetividade entre pai e filho, não é possível a anulação do registro civil, tampouco a desconstituição de paternidade. (Apelação: 1.0024.05.872059-0/001(1), Relator: Des. (a) SILAS VIEIRA)

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - EXAME DE DNA - PATERNIDADE SÓCIO AFETIVA. - Apesar do resultado negativo do exame de DNA, deve ser mantido o assento de paternidade no registro de nascimento, tendo em vista o caráter sócio afetivo da relação que perdurou por aproximadamente vinte anos, como se pai e filha fossem. (Apelação: 1.0105.02.060668-4/001(1), Relator: Des. (a) TERESA CRISTINA DA CUNHA PEIXOTO)

No mesmo sentido já foi decidido nesta primeira câmara:

APELAÇÃO CÍVEL - BUSCA E APREENSÃO DE MENOR - PRETENSÃO DE RESTITUIÇÃO DE MENOR AO PROGENITOR GENÉTICO - ESTUDO PSICOSSOCIAL - RECOMENDAÇÃO DE PERMANÊNCIA DO INFANTE NO AMBIENTE SÓCIO-FAMILIAR EM QUE ESTÁ INSERIDO DESDE TENRA IDADE - VÍNCULO AFETIVO CONSOLIDADO - INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS QUE AUTORIZEM A CONCLUSÃO ACERCA DA CONVENIÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA SITUAÇÃO ESTABELECIDA - PROVIMENTO NEGADO. Tratando-se de ação relativa à guarda de menores, o interesse e bem-estar destes devem nortear a tomada de qualquer decisão judicial. Se os elementos de convicção contidos nos autos demonstram que a criança está inserida no ambiente sócio-familiar em que vive, reconhecendo no atual guardião, ex-compaheiro da falecida genitora referências de afeto e autoridade, não há razões para alteração da situação, mormente se o estudo psicossocial elaborado por 'experts' apresenta conclusões nesse sentido. (Apelação: 1.0313.06.197097-3/001(1), Relator: Des. (a) ARMANDO FREIRE)

Importante frisar o Relatório do Estudo Social de fls. 59/63. Restou claramente demonstrado que há entre a criança e o requerido uma relação afetiva íntima e duradoura, caracterizada pela consideração frente a terceiros como se filha fosse.

É o que se constata:

"Observamos que os vínculos de efetividade e afetividade familiar estão fortalecidos desde o nascimento da M., com os membros do grupo familiar (que serão citados) bem como com os avós paternos (pais do I.). Tanto no dia da visita como no dia da entrevista , observamos que a menina é inteligente, educada, atenciosa, conversou conosco naturalmente."

"No dia da entrevista percebemos que ela ficava sempre próxima ao requerido, apresenta-se bem tratada, bem arrumada, limpa, alimentada, fala que sabe sua história de vida, ou seja, sabe que seu pai é W. referindo-se a ele pelo nome de C., mas afirma que não quer conviver com ele e com sua família, porque para ela, pai é o I., reconhece como parente apenas os familiares que convivem com ela desde o nascimento (a infância), ou seja, os familiares do I., refere-se a esses por vovó e vovô e seus irmãos, chama-os pelos nomes."

"Observamos que o requerido ao registrar a criança exteriorizou publicamente a consideração pela M. como filha. Percebemos que ele é pai da criança e zela pela criação, educação, ensinamentos, direciona e oferece suporte afetivo, além do material, há ainda, o tratamento mútuo de amor e respeito entre os familiares."

"Salientamos que o relacionamento do pai com a criança já se efetivou, consolidou-se para sempre."

No caso em tela, restou claramente demonstrado ser evidente a existência de uma relação paterno-filial entre o requerido e a criança, em que há o chamamento de filha e a aceitação do chamamento de pai, não sendo possível proceder a anulação do registro de nascimento da menor.

Não é demais lembrar que o interesse da criança deve estar em primeiro lugar, uma vez que, é inegável que em casos de convivência habitual e duradoura com pessoas estranhas ao parentesco, o menor geralmente adquire vínculos de confiança, amor e afetividade em relação a estas pessoas.

Vale salientar, entretanto, que apesar de não ser possível anular o registro de nascimento da criança neste momento, em função da paternidade sócio-afetiva, trata-se de direito imprescritível (ECA, art. 27) de a menor buscar o reconhecimento do pai biológico. A só existência do registro não pode limitar o exercício do direito de buscar, a qualquer tempo, o reconhecimento da paternidade. Assim, conhecendo o pai biológico e estando registrada como filha de outra pessoa, a criança não está inibida de intentar ação para alterar o seu registro futuramente, reconhecendo-se a sua ascendência.

Determina o Código Civil de 2002:

Art. 1606. A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz.

Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação.

Confira-se jurisprudência do STJ:

"Não se extingue o direito de o filho investigar a paternidade e pleitear a alteração do registro, mesmo quando vencido integralmente, depois da maioridade, o prazo de quatro anos. Precedentes da Segunda Seção. Recurso não conhecido." (Resp 208.788-SP, DJ 22/4/2003)

Assim, caso o menor, quando alcançar a maioridade assim o queira, poderá perseguir a sua real identificação, que não se confunde com a identidade, que é subjetiva.

Com tais considerações, nego provimento ao recurso mantendo na totalidade a decisão de primeiro grau.

Custas recursais pelo recorrente, verbas que permanecem em suspenso em razão do deferimento da gratuidade judiciária.

Votaram de acordo com o(a) Relator(a) os Desembargador(es): ARMANDO FREIRE e ALBERTO VILAS BOAS.

SÚMULA :      NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.

sábado, 8 de outubro de 2011

Abaixo o Juridiquês!

A comunicação escrita é a principal ferramenta de trabalho dos advogados e deve ser utilizada de maneira clara e convincente.
É fato que toda atividade profissional possui uma linguagem própria do setor, desenvolvida para auxiliar a comunicação entre os pares. Médicos, engenheiros, empresários e policiais têm em sua comunicação particular palavras, expressões e jargões desconhecidos dos leigos, mas que são importantes no contexto interno de cada área, para melhor expressar as ideias.

Na advocacia não poderia ser diferente. Por isso, palavras como doutrina, jurisprudência, contencioso, liminar e até expressões em latim como habeas corpus, ad hoc e modus operandi são necessárias no contexto dos processos judiciais. No entanto, além dessas palavras e expressões já consagradas ao longo do tempo, muitos advogados “recheiam” seus textos com termos que vão além da necessidade de comunicar uma ideia específica, gerando peças jurídicas que são verdadeiros desafios para os que precisam entender o exato teor dos argumentos, escritos ou orais, apresentados.

Assim, encontramos diversas peças jurídicas com expressões como: “exordial acusatória”, “consorte supérstite” e “excelso sodalício”, para denominar respectivamente os termos denúncia, viúvo e Supremo Tribunal Federal, como exemplifica o professor Virgilio de Mattos, da Escola Superior Dom Helder Câmara, em matéria publicada na revista Visão Jurídica.

Quando um advogado pergunta “Você já perlustrou os autos?”, ele está utilizando uma linguagem arcaica. Seria mais adequado se ele fizesse a pergunta usando a expressão “Você já leu o processo?”

O o exemplo mostrado por Claudio Moreno, mestre em língua portuguesa, e Túlio Martins, juiz de Direito e jornalista, no excelente livro “Português para convencer – comunicação e persuasão em Direito” (Editora Ática, 2006), ilustra bem a questão de linguagem inadequada na elaboração de textos jurídicos, em um parágrafo de petição:

Destarte, como coroamento desta peça-ovo, emerge a premente necessidade de jurisdição fulminante, aqui suplicada a Vossa Excelência. Como visto nas razões suso expostas com pueril singeleza, ao alvedrio da lei e com a repulsa do Direito, o energúmeno passou a solitariamente cavalgar a lei, esse animal que desconhece, cometendo toda sorte de maldades contra a propriedade deste que vem às barras do tribunal. Conspurcou a boa água e lançou ao léu os referidos mamíferos. Os cânones civis pavimentam a pretensão sumária, estribada no Livro das Coisas, na Magna Carta, na boa doutrina e nos melhores arestos deste sodalício. Urge sejam vivificados os direitos fundamentais do Ordenamento Jurídico, espeque do petitório que aqui se encerra. O apossamento solerte e belicoso deve ser sepultado ab initio e inaudita altera parte, como corolário da mais lidima Justiça.

“Por que nossa linguagem comum, tão cômoda e tão fácil, torna-se obscura e ininteligível quando empregada nos contratos e nos testamentos?”
Montaigne

Por mais estranho, e até de certa forma cômico, que possa parecer o texto apresentado, ainda hoje é possível encontrar esse tipo de redação nos processos judiciais. Acreditam os autores estar praticando uma comunicação escrita de alto nível, quando na verdade estão produzindo textos confusos que deixam tanto o Direito quanto os fatos em segundo plano.

Segundo Moreno e Martins, no exemplo citado, o advogado explica os fatos e justifica a necessidade de obter jurisdição de urgência para defender um proprietário que move ação contra um vizinho que invadiu uma parte de seu terreno, onde existe um córrego com água potável e um abrigo para vacas leiteiras. Pede liminarmente a reintegração da posse dizendo que houve violência e que a invasão se deu clandestinamente, e que isso está lhe trazendo crescentes prejuízos.

Como se vê, a questão é simples. No entanto, o advogado pode pôr tudo a perder por se expressar de forma inadequada. Os autores sugerem uma nova abordagem de redação para a mesma petição, mais clara e simples, em estilo moderno e mais adequado, como no exemplo apresentado a seguir:

Do que foi exposto acima, conclui-se que os fatos narrados nesta petição inicial são incontroversos e estão provados sumariamente por meio dos documentos aqui juntados. Tanto o Código Civil como a Constituição da República contêm regras claras que protegem a propriedade, observada sua função social – ou seja, exatamente a hipótese deste processo. Como nos ensina a melhor doutrina e a jurisprudência, o pedido em exame contém todos os elementos que determinam a concessão imediata da reintegração de posse: há interesse econômico, os fatos estão provados e o Direito do autor é indiscutível. A água potável existente no local está sendo poluída e as vacas leiteiras ficaram ao desabrigo, pelo que os prejuízos são evidentes. Assim, pede a concessão da liminar, por medida de Direito e de Justiça.

O exemplo citado demonstra que toda peça jurídica pode, e deve, ser escrita de forma a ser compreendida não apenas pelos operadores do Ddireito envolvidos no processo, mas também pelas partes, ou seja, pelos clientes dos respectivos advogados, muitas vezes pessoas de outras áreas profissionais como médicos, engenheiros e empresários, e até de pessoas simples, como donas de casa, mecânicos, e pequenos comerciantes que têm pouca ou nenhuma compreensão dos termos e jargões jurídicos, ou seja, do “juridiquês”. Aalguns deles não conseguem nem compreender alguns dos termos da procuração que assinam autorizando seus advogados a defender seus direitos.

Trazendo a questão da comunicação para o marketing jurídico e as relações comerciais dos advogados com o mercado, no processo de captação, conquista e fidelização de cliente, entendemos que uma comunicação clara, agradável e persuasiva pode fazer grande diferença para o sucesso do escritório. A linguagem deve levar em conta o nível de compreensão do público-alvo e jargões jurídicos devem ser evitados.

Alguns advogados têm escrito e publicado artigos informativos dirigidos ao seu público-alvo como ferramenta de marketing jurídico. Divulgação desses conteúdos na imprensa e na internet presta um grande serviço à comunidade, tirando dúvidas e sugerindo soluções para os problemas jurídicos do dia a dia. Ao mesmo tempo, os artigos publicados por advogados discutindo assuntos relevantes ajudam a promover sua marca e construir uma reputação positiva no mercado. No entanto, essa forma de praticar o marketing jurídico precisa levar em conta os conceitos apresentados anteriormente.

O uso de expressões e palavras só compreensíveis pelos operadores do Direito faz com que a mensagem não chegue de maneira adequada ao público- alvo ou que este perca o interesse de conhecer o teor do texto. Neste caso, a mensagem é inútil, pois o leitor desiste de compreender os textos se eles forem excessivamente rebuscados e técnicos.
Não somos contra a utilização da linguagem forense por parte dos advogados. No entanto, esse tipo de linguagem tem o momento adequado e deve sempre ser direcionado a públicos que sabidamente irão compreendê-lo. Aalém disso, o bom senso e o objetivo da comunicação devem sempre ser priorizados, tanto nas petições jurídicas como na comunicação direta com os clientes-alvo.
Acreditamos que na prática de uma advocacia moderna e eficaz o advogado deve privilegiar o sentido e o objetivo da comunicação, procurando expressar- se, seja por via escrita, seja por via oral, de forma clara, persuasiva e convincente, sem pedantismos, sempre levando em conta a capacidade de compreensão de seu público-alvo. Assim, o profissional do Direito estará sintonizado com o cliente e, ao mesmo tempo, será eficaz em sua prática jurídica. 
Ari Lima
Empresário, engenheiro, consultor, palestrante e especialista em marketing jurídico e gestão de escritórios de advocacia. www.arilima.com / arilima@arilima.com
* Colaborou Alexandrina Saldanha, bacharel em Direito e pós-graduada em produção e revisão de textos.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

ARTIGO: RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ROUBO DE COFRE BANCÁRIO

A RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ROUBO DE COFRE BANCÁRIO.

Flávio Tartuce.
Doutor em Direito Civil pela USP.
Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Coordenador e professor dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da Escola Paulista de Direito (EPD, São Paulo).
Professor da Rede de Ensino LFG.
Autor da Editora GEN/Método.

Sempre volta ao debate o tema relativo à responsabilidade civil da instituição bancária pelo roubo de cofre localizado em suas instalações. Discute-se amplamente quais os limites do dever de indenizar da entidade financeira, o que se pretende esclarecer por este breve estudo.

De início, é forçoso visualizar a presença de um contrato de depósito em casos tais, em regra regido pelo Código de Defesa do Consumidor, diante da notória presença dos elementos da relação de consumo descritos nos arts. 2º e 3º da Lei 8.078/1990. Não se olvide que o Superior Tribunal de Justiça, por meio de sua Súmula 297, já definiu que “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”. No que concerne ao depósito bancário, deduz-se naquela Corte Superior que “Ainda que os bens comprovadamente depositados no cofre roubado sejam de propriedade de terceiros, alheios à relação contratual, permanece hígido o dever de indenizar do banco, haja vista sua responsabilidade objetiva frente a todas as vítimas do fato do serviço, sejam elas consideradas consumidores stricto sensu ou consumidores por equiparação” (STJ, REsp 1045897/DF, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 24/05/2011, DJe 01/06/2011).

Dessa forma, não restam dúvidas quanto à incidência da Lei Consumerista em casos tais, diante da prestação do serviço bancário, subsumindo-se a responsabilidade objetiva descrita no art. 14, caput, da Lei 8.078/1990, in verbis: “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”.

Como consequência direta dessa aplicação, não há necessidade de o cliente bancário demonstrar a culpa da instituição, havendo uma presunção absoluta desta, nos termos da responsabilização objetiva consagrada pela Norma Protetiva. Com precisão, a jurisprudência tem afastado a alegação de que o roubo ou o furto constitui caso fortuito ou força maior, por ingressar no risco-proveito ou risco do empreendimento da instituição bancária (ver: STJ, REsp 994.040/PE, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 07/04/2011, DJE 18/04/2011).

Sob a perspectiva da estrutura do negócio, pelo contrato de depósito o depositário recebe um objeto móvel e corpóreo, para guardar, até que o depositante o reclame (art. 627 do Código Civil). O depósito é um contrato, em regra, unilateral e gratuito (art. 628 do Código Civil). Entretanto, é possível o depósito bilateral e oneroso, diante de convenção das partes, atividade ou profissão do depositário. É justamente o que ocorre nos contratos de guarda em cofres prestados por instituições bancárias, aplicando-lhes ainda o Código de Defesa do Consumidor (como mesma conclusão: TJSP, Apelação 7132284-2, Acórdão 2615160, São Paulo, 21.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Richard Paulo Pae Kim, j. 15.05.2008, DJESP 02.06.2008).

O contrato em questão é comutativo e também personalíssimo (intuitu personae), fundado na confiança do depositante em relação ao depositário. Em tom didático, pode-se afirmar que o depositante deposita confiança no depositário, tendo o último o estrito dever de vigilância da coisa depositada. Trata-se de um contrato temporário, que pode ser fixado por prazo determinado ou indeterminado. Constitui ainda contrato real, pois, a exemplo do comodato e do mútuo, tem aperfeiçoamento com a entrega da coisa a ser depositada (tradição). Em outras palavras, no depósito em cofre, o contrato só passa a ser válido quando o depositante entrega seus pertences ao depositário, no caso, a instituição bancária.

Deve ficar claro que é melhor a configuração da relação jurídica ora estudada como contrato de depósito e não como de locação. Consigne-se que as instituições financeiras preferem, por vezes, a denominação documental locação na inútil tentativa de exclusão de sua responsabilidade, como se verá adiante, pelos julgados transcritos.

No caso do depósito de cofre são da sua essência a segurança e a proteção que se busca por meio negócio, sendo essas as suas causas. Desse modo, pela própria estrutura do negócio jurídico em questão, e também pela incidência do Código de Defesa do Consumidor, em diálogo das fontes com o Código Civil, deve ser considerada como nula a cláusula que exclui ou atenua a responsabilidade civil do depositário. Para tal conclusão, de início, cite-se a previsão do art. 25, caput, do CDC: “É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores”. Ato contínuo, a nulidade absoluta da cláusula de não-indenizar ou de limitação da indenização é consagrada pelo art. 51, inc. I, do CDC (“São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos”).

Em reforço, diante de um diálogo de complementaridade e pela patente imposição do conteúdo negocial por parte do depositário, serve como apoio o art. 424 do Código Civil que reconhece a existência de cláusulas abusivas nos contratos de adesão (“Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio”). Ora, não há a menor dúvida de que, por meio da cláusula de irresponsabilidade ou de limitação da indenização, o depositante-aderente está renunciado a um direito inerente ao negócio, qual seja a segurança buscada. Pelo caminho dos comandos legais citados, não tem sido diferente a conclusão da jurisprudência, conforme se extrai das seguintes decisões:

“DIREITO CIVIL. PENHOR. DANOS MORAIS E MATERIAIS. ROUBO/FURTO DE JÓIAS EMPENHADAS. CONTRATO DE SEGURO. DIREITO DO CONSUMIDOR. LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR. CLÁUSULA ABUSIVA. ABUSIVA. AUSÊNCIA DE INDÍCIO DE FRAUDE POR PARTE DA DEPOSITANTE. I - O contrato de penhor traz embutido o de depósito do bem e, por conseguinte, a obrigação acessória do credor pignoratício de devolver esse bem após o pagamento do mútuo. II - Nos termos do artigo 51, I, da Lei nº. 8.078/90, são abusivas e, portanto, nulas, as cláusulas que de alguma forma exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios no fornecimento do produto ou do serviço, mesmo que o consumidor as tenha pactuado livre e conscientemente. III - Inexistente o menor indício de alegação de fraude ou abusividade de valores por parte da depositante, reconhece-se o dever de ressarcimento integral pelos prejuízos morais e materiais experimentados pela falha na prestação do serviço. IV - Na hipótese dos autos, em que o credor pignoratício é um banco e o bem ficou depositado em cofre desse mesmo banco, não é possível admitir o furto ou o roubo como causas excludentes do dever de indenizar. Há de se levar em conta a natureza específica da empresa explorada pela instituição financeira, de modo a considerar esse tipo de evento, como um fortuito interno, inerente à própria atividade, incapaz de afastar, portanto, a responsabilidade do depositário. Recurso Especial provido”. (STJ, REsp. 1.133.111/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 06/10/2009, DJE 05/11/2009).

“RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. ROUBO EM AGÊNCIA BANCÁRIA. SUBTRAÇÃO DE BENS DOS AUTORES DEPOSITADOS EM COFRE SITUADO NA AGÊNCIA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS QUE TEM NATUREZA DE DEPÓSITO E NÃO DE LOCAÇÃO. CONDUTA NEGLIGENTE DO BANCO CONFIGURADA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO BANCO NOS TERMOS DO ART. 14, DO CDC. CLÁUSULA EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE CONSIDERADA NULA EM CONTRATOS DE CONSUMO. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. DANOS MATERIAIS E MORAIS QUE DEVEM SER REPARADOS, PORÉM, COM A DIMINUIÇÃO DO VALOR A TÍTULO DE DANOS MORAIS. VALOR QUE NÃO PODE ENSEJAR O ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DOS AUTORES. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. VALOR DE ATUALIZAÇÃO DE MERCADO DOS DANOS MATERIAIS. CONTAGEM QUE SE DÁ A PARTIR DA DECLARAÇÃO DE IMPOSTO DE RENDA TRAZIDA AOS AUTOS. MODIFICAÇÃO IMPOSSIBILITADA PELA AUSÊNCIA DE ELEMENTOS PROBATÓRIOS TEMPESTIVAMENTE OFERTADOS. Documentos juntados com o recurso de apelação que não podem ser considerados, por ofensa aos arts. 396 e 397, do CPC. Recursos parcialmente providos. Sentença parcialmente reformada. SUCUMBÊNCIA. Reciprocidade. Procedência. Repartição da sucumbência proporcionalmente de acordo com a parcela vencida por cada uma das partes na demanda. Recursos parcialmente providos. Sentença parcialmente reformada”. (TJSP, Apelação n. 7218784-7, Acórdão n. 3437153, Piracicaba, Vigésima Primeira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ademir de Carvalho Benedito, julgado em 03/12/2008, DJESP 05/02/2009).

Na linha das premissas adotadas pelos acórdãos, são reparáveis todos os danos suportados pelo depositante-consumidor, o que inclui os danos materiais e os morais, decorrências naturais do princípio da reparação integral dos danos (art. 944, caput, do Código Civil e art. 6º, inc. VI, do Código de Defesa do Consumidor). Para ilustrar, os valores correspondentes às joias constituem danos emergentes ou danos positivos, o que a pessoa efetivamente perdeu (art. 402 do Código Civil). Há que se falar também em danos morais, diante de lesões a direitos da personalidade, sendo fixada a indenização com base em um preço de afeição relativo à coisa (art. 952, parágrafo único, do Código Civil).

Por fim, resta a questão relativa à prova do conteúdo depositado no cofre, a fim de que seja delimitado o quantum indenizatório em benefício do depositante. Por vezes as instituições financeiras alegam que cabe ao cliente a comprovação do que estava no interior do cofre, premissa totalmente falsa. Diante da existência da responsabilidade objetiva do depositário e da possibilidade de inversão do ônus da prova a favor do consumidor, caberá a instituição-depositária demonstrar que o conteúdo alegado não condiz com a realidade. Como é notório, a inversão do ônus da prova para tutela do consumidor cabe nos casos de sua hipossufiência ou em sendo suas alegações verossímeis (art. 6º, inc. VIII, da Lei 8.078/1990). No plano jurisprudencial, várias decisões aplicam a referida inversão em demandas envolvendo o roubo ou o furto a cofre bancário. A título de exemplo:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. LOCAÇÃO DE COFRE EM BANCO. ROUBO. DANO MATERIAL. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 284/STF. ADEMAIS, A APRECIAÇÃO DA MATÉRIA OCORREU DENTRO DOS LIMITES DA LIDE. AUSÊNCIA DE COMBATE ESPECÍFICO AOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. APLICAÇÃO DA SÚMULA Nº 182/STJ. AINDA QUE SE ENTENDESSE PRESENTE A DEMONSTRAÇÃO DE OFENSA AO ART. 333, I, DO CPC, O RECURSO ESPECIAL NÃO INFIRMOU O FUNDAMENTO DE QUE INCIDE, NA ESPÉCIE, O CDC, QUE PERMITE A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA QUANDO NECESSÁRIA, CASO DOS AUTOS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 283/STF. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. O Recurso Especial mostra-se deficiente em sua fundamentação, no tocante à alegada ofensa aos arts. 128 e 460 do CPC, pois, apesar de mencioná-los na folha inicial do apelo, não expõe o motivo pelo qual eles teriam sido vulnerados. Incidência da Súmula nº. 284/STF. 2. Ademais, o Juízo de Primeiro Grau e o Tribunal a quo restringiram-se aos limites da lide, não havendo de se falar em julgamento extra petita. 3. A ausência de ataque aos fundamentos da decisão agravada, quanto aos demais preceitos normativos supostamente contrariados e ao dissídio jurisprudencial, atrai a incidência da Súmula nº. 182/STJ. 4. Além disso, mesmo que se entendesse ter havido exposição de motivos acerca da sugerida ofensa ao art. 333, I, do CPC, o Recurso Especial esbarraria no óbice da Súmula nº. 283/STF, pois inexistiu combate ao ponto do acórdão estadual em que se registrou tratar-se de hipótese de incidência do Código de Defesa do Consumidor, sendo possível a inversão do ônus da prova quando necessária, caso dos autos. 5. Agravo regimental não provido”. (STJ, AgRg-REsp 888.680/DF, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 04/08/2011, DJE 15/08/2011

“PROCESSO CIVIL E CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. VIOLAÇÃO DE COFRE DURANTE FURTO OCORRIDO EM AGÊNCIA BANCÁRIA. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO DIREITO À ESPÉCIE. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO DE INDENIZAÇÃO PELOS DANOS MATERIAIS APONTADOS NA INICIAL. Pedido de indenização formulado por consumidor-locatário de cofre alugado em instituição financeira, que perdeu seus bens nele depositados por ocasião de furto ocorrido no interior de instituição bancária. - Foi reconhecida nas instâncias ordinárias que a consumidora habitualmente guardava bens valiosos (jóias) no cofre alugado pela locadora-instituição bancária, portanto, verossímeis as afirmações. - Hipótese de aplicação do art. 6º, VIII, do CDC, invertendo-se o ônus da prova em favor do consumidor, no que concerne ao valor dos bens depositados no cofre locado. - Reconhecido o dever de inversão do ônus probatório em favor da consumidora hipossuficiente e com alegações verossímeis que exsurgem do contexto das provas que produziu, aplica-se o disposto no art. 257 do RISTJ e a Súmula nº. 456 do STF, ressaltando-se que a instituição financeira-recorrida nunca impugnou o valor pleiteado a título de danos materiais. Recurso Especial provido”. (STJ, REsp 974.994/SP, Terceira Turma, Relª Min. Fátima Nancy Andrighi, julgado em 05/06/2008, DJE 03/11/2008).

“RESPONSABILIDADE CIVIL. BANCO. ROUBO DE JÓIAS MANTIDAS EM COFRE ALUGADO PELA CLIENTE. AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. PROCEDÊNCIA. RESPONSABILIDADE DO DANO CONFIGURADA, DADA SUA OBRIGAÇÃO DE GARANTIR A VIGILÂNCIA E A INTEGRIDADE DO COFRE. DESCABIMENTO DA INVOCAÇÃO DA CLÁUSULA DE INDENIZAR CONSTANTE DO CONTRATO. Ocorrência do dano alegado pela autora que comporta ser admitida no caso, tendo-se em vista a prova documental que apresentou, podendo ser aplicada em seu favor, ainda, a inversão do ônus da prova estabelecida pelo Código de Defesa do Consumidor. Cabimento, outrossim, da indenização por danos morais também postulada pela autora. Procedência da ação que deve ser mantida. Recurso do réu improvido, com observação”. (TJSP, Apelação n. 9159727-37.2003.8.26.0000, Acórdão n. 5073254, São Paulo, Décima Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Thiago de Siqueira, julgado em 30/03/2011, DJESP 03/05/2011).

Observe-se que a solução da inversão do ônus da prova cabe mesmo quando o contrato é configurado como sendo de locação e não de depósito, como se verifica dos três acórdãos expostos. Em todas as hipóteses, deve o julgador ser guiado pelas circunstâncias do caso concreto, pelas as máximas de experiência, pelo bom senso e pelos fins sociais da norma descritos no art. 5º da Lei de Introdução.

Em conclusão, para que faça jus à indenização pelo conteúdo alegado, cabe ao consumidor apenas a prova mínima relativa ao conteúdo do cofre, o que pode ser concretizado por meio de testemunhas, fotos, notas fiscais, recibos, declarações do imposto de renda e outros documentos idôneos (TJSP, Apelação n. 7060258-1, Acórdão n. 3483110, São Paulo, Décima Sexta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Candido Alem, julgado em 02/12/2008, DJESP 24/03/2009).

A partir de então, realizada a prova mínima, a carga probatória negativa quanto ao conteúdo do cofre caberá à instituição bancária, sob pena de total procedência da demanda proposta pelo depositante-consumidor.

SUGESTÃO DE DOUTRINA

  • GAGLIANO, Plablo Stolze & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil
  • CHAVES, Cristiano & ROSENVALD, Nelson. Direito Civil
  • MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado, tomos 1 a 4, Bookseller
  • GOMES, Orlando. “Introdução do Direito Civil”. Rio de Janeiro: Forense.
  • PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil
  • DIREITO CIVIL BRASILEIRO. Carlos Roberto Gonçalves. Editora Saraiva Volumes: 01 a 03.
  • DIREITO CIVIL. Silvio de Salvo Venosa. Editora Atlas. Volumes: 1 a 7.
  • CURSO DE DIREITO CIVIL. Maria Helena Diniz. Editora Saraiva. Volumes 1 a 7.
  • CURSO DE DIREITO CIVIL. Washington de Barros Monteiro. Editora Saraiva. Volumes: 1 a 6.
  • DIREITO CIVIL. Silvio Rodrigues. Editora Saraiva. Volumes: 1 a 7.

Mandamentos do Advogado

Eduardo Couture

ESTUDA - O Direito se transforma constantemente. Se não seguires seus passos, serás cada dia um pouco menos advogado;

PENSA - O Direito se aprende estudando, mas exerce-se pensando;

TRABALHA - A advocacia é uma luta árdua posta a serviço da Justiça;

LUTA - Teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça;

SÊ LEAL - Leal com teu cliente, a quem não deves abandonar senão quando o julgares indigno de ti. Leal com o adversário, ainda que ele seja desleal contigo. Leal com o Juiz, que ignora os fatos e deve confiar no que dizes;

TOLERA - Tolera a verdade alheia na mesma medida em que queres que seja tolerada a tua;

TEM PACIÊNCIA - O tempo se vinga das coisas que se fazem sem a sua colaboração;

TEM FÉ - Tem fé no Direito como o melhor instrumento para a convivência humana; na Justiça, como destino normal do Direito; na Paz, como substituto bondoso da Justiça; e sobretudo, tem fé na Liberdade, sem a qual não há Direito, nem Justiça, nem Paz;

ESQUECE - A advocacia é uma luta de paixões. Se a cada batalha, fores carregando a tua alma de rancor, dia chegará em que a vida será impossível para ti. Terminando o combate, esquece tanto a vitória como a derrota; e,

AMA A TUA PROFISSÃO - Trata de considerar a advocacia de tal maneira que, no dia em que teu filho te peça conselhos sobre o destino, consideres uma honra para ti propor-lhe que se faça advogado.