EMENTA: ALTERAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - TRANSEXUAL -
REDESIGNAÇÃO DO GÊNERO NO REGISTRO CIVIL - INEXISTÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
DE UMA PREVISÃO QUE TORNE O PEDIDO INVIÁVEL - ART. 1º, III, ART. 3º, IV E ART.
5º, X DA CF/88 - PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA INVIOLABILIDADE
DA INTIMIDADE. - Se não existe no ordenamento jurídico qualquer vedação à
alteração de registro de pessoa transexual, não há que se falar em
impossibilidade jurídica do pedido, que é encontrada nos princípios e valores
que a Constituição da República sobreleva. Seguindo-se os preceitos
constitucionais, a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio fundamental
da República Federativa do Brasil, constitui diretriz que deve nortear a
alteração de registro civil de transexual. A Carta Magna objetiva em seu art.
3° promover o bem de todos sem qualquer preconceito de sexo e salienta no inc.
X de seu art. 5° ser inviolável a intimidade, a honra e a vida privada de uma
pessoa. Deve-se, desta forma, adaptar a designação sexual e o prenome à nova
situação do cidadão. - O principio da veracidade que norteia o registro público
impõe que seja feita a anotação à sua margem de que se trata de averbação feita
por ordem judicial.
APELAÇÃO
CÍVEL N° 1.0647.07.081676-2/001 - COMARCA DE SÃO SEBASTIÃO DO PARAÍSO -
APELANTE(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS - APELADO(A)(S):
M.A.C. - RELATORA: EXMª. SRª. DESª. VANESSA VERDOLIM HUDSON ANDRADE
ACÓRDÃO
VOTO
Trata-se
de recurso de apelação proposto à f. 231/246 pelo Ministério Público do Estado
de Minas Gerais, nos autos da ação de Alteração de Registro Civil movida por M.
A. C. no intuito de reformar a sentença de f. 199/224, que julgou procedente o
pedido inicial para autorizar as retificações do nome e do sexo do autor em seu
assento civil, transformando seu nome original em M. V. C., e o seu sexo
original registrado para feminino. Determinou ainda que no assento civil do
autor seja consignada a averbação de que seu nome e sexo foram alterados por
decisão judicial.
Verifica-se
nos autos que o embargante interpôs embargos de declaração à fls. 229/230
requerendo fosse a averbação da alteração do seu nome e de seu sexo expressa
apenas no livro A-016, fls. 282-v, termo n° - 17068 do Cartório de Registro
Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de Itaquera -
Comarca da capital de São Paulo, e não na via que será entregue ao embargante.
À fls. 248/249 o juiz decidiu por acolher os embargos e corrigir a omissão.
Nas suas
razões recursais, o apelante afirma que a sua insatisfação se dá apenas quanto
à procedência do pedido do autor de alteração no registro civil da designação
do sexo de masculino para feminino. Afirma que o fato de o autor ter se
submetido à cirurgia de transgenitalização não o torna, do ponto de vista
genético, pessoa do sexo feminino e que desta forma não há respaldo em nosso
ordenamento jurídico para a procedência do pedido. Salienta que tal alteração
poderia induzir muitas pessoas ao erro, gerando inúmeros reflexos sobre a vida
de terceiros. Requer seja dado provimento ao recurso para modificar a sentença
parcialmente, permanecendo inalterado o seu sexo original.
Em
contrarrazões, à f. 251/257, alega o apelado, em síntese, que a manutenção da
sentença é imprescindível para a implementação da efetiva dignidade da pessoa
humana, protegendo-se dessa forma a sua intimidade, imagem, individualidade,
honra e vida privada. Assevera que nome e sexo são direitos da personalidade
por excelência. Requer desta forma seja negado provimento ao recurso e mantida
a sentença ora hostilizada na íntegra.
Conheço
do recurso, presentes os pressupostos de admissibilidade.
Inexistindo
preliminares, passo ao exame do mérito.
Observa-se
que o apelante alega que não há respaldo em nosso ordenamento jurídico para que
possa ser acolhido o pedido do autor, qual seja, alterar sua designação sexual
nos seus documentos.
Sabe-se
que a impossibilidade jurídica pode surgir de forma expressa, quando a lei
textualmente proíbe determinada pretensão, e pode ainda decorrer de impedimento
implícito, quando o provimento requerido não puder ser atendido em face de
estar subentendida a sua vedação, por afronta aos princípios básicos do nosso
sistema jurídico ou pelo próprio ordenamento legal cujas determinações se
mostrem contrárias à pretensão.
Desta
forma, MONIZ DE ARAGÃO ensina que:
"uma
ação pode ser rejeitada porque o autor não praticara ato prévio, sem o qual lhe
era vetado o seu exercício'. Resume seu ponto de vista pela seguinte forma: 'A
possibilidade jurídica, portanto, não deve ser conceituada como se tem feito,
com vistas à existência de uma previsão no ordenamento jurídico, que torne o
pedido viável em tese, mas, isto sim, com vistas à inexistência, no ordenamento
jurídico, de uma previsão que o torne inviável. Se a lei contiver um tal veto,
será caso de impossibilidade jurídica do pedido; faltará uma das condições da
ação', a solução se encontra no art. do CC, que dá ao proprietário o direito de
defender a sua propriedade erga omnes, propriedade que se adquire com o
contrato de compra e venda".
O pedido
formulado pelo autor na ação em questão é de alteração de prenome, bem como a
redesignação sexual. Ora, sabe-se que não existe no ordenamento jurídico
qualquer vedação à alteração de registro quando se trata de transexual, não
havendo que se falar em impossibilidade jurídica do pedido. Pela inexistência
de leis que regulem o caso específico, os juristas devem se valer dos
princípios constitucionais e da hermenêutica jurídica.
Para
fazer as necessárias considerações acerca do tema em questão, vale expor os
direitos fundamentais e personalíssimos e sua relação com a alteração de
registro.
Ratifica-se
a importância dedicada aos direitos individuais, social, princípio da dignidade
da pessoa humana e os objetivos da República, salientando que são suporte para
a alteração do registro. Sendo a Constituição a Lei Maior, a interpretação das
normas infraconstitucionais deve ser baseada em seus ditames. A interpretação
das normas terá, neste processo de redesignação do estado sexual, fundamental
importância.
Neste
sentido é importante citar alguns artigos da Constituição Federal de 1988:
"Art.
1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos:
III - a
dignidade da pessoa humana;"
"Art.
3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV -
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação."
"Art.
5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes:
X - são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação;"
Cite-se
ainda o art. 1º do Código Civil de 2002:
"Art.
1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil."
Pelo
acima explicitado, a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio fundamental
da República Federativa do Brasil, consagrada no art. 1º, III, da CRFB,
constitui diretriz que deve nortear a alteração de registro civil de
transexual.
Primeiramente
deve-se entender o sentido de direitos e garantias fundamentais. São os
desdobramentos imediatos dos princípios fundamentais, previstos na Carta Magna.
Valioso memorar que compõem a integridade moral aqueles direitos elencados no
artigo 5º, X, da CRFB. A integridade moral requer o respeito dos demais às
características da pessoa. Se o indivíduo, por encontrar-se em situação
limítrofe no concernente à sexualidade, é incapaz de integrar-se socialmente,
em decorrência do constante conflito entre o seu ser e o dever ser social, não
há porque negar-lhe a redesignação sexual em seus documentos.
Saliento
ainda que são princípios fundamentais os objetivos da República (art. 3º,
CRFB). Destaca-se o inciso IV que exalta a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação. E se somos iguais, sendo humanos, logo este direito à realização
pessoal que frisamos não poderia deixar de competir ao autor. Por isso,
consagrado o objetivo da República constante do artigo 3º, IV, da CRFB.
Resta,
então, ao recorrido transexual operado, a disparidade entre o que foi
registrado e o que se apresenta no mundo dos fatos. Inicia-se, após o
ajustamento do físico ao psíquico, agora com propriedade para tal
reivindicação, o pleito pelo ajuste jurídico à sua nova situação fática.
O
registro civil do nascimento dota de formalidade e publicidade aquele fato
jurídico que é o nascimento, início da personalidade civil. De acordo com nosso
Código Civil, "toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem
civil" (art. 1º).
Saliento
desta forma que os estados individuais descritos nos documentos, em geral,
como, por exemplo, sexo, idade, nome e nacionalidade, são atributos da
personalidade, ou seja, integram-na. E, por isso, são protegidos pelos direitos
da personalidade.
Ocorre
que, o apelado, quando do seu nascimento, no registro civil, foi classificado
segundo o seu aspecto externo como pertencente ao sexo masculino. Vale fazer a
ressalva de que a avaliação da fisionomia não é a única para a determinação do
sexo de um indivíduo, sendo essencial apreciar os aspectos psíquicos e
comportamentais.
Assevero
que os direitos da personalidade garantirão ao autor o direito à alteração do
seu registro civil, adaptando a designação sexual e o prenome à nova situação
do indivíduo. O grande poder que reveste os direitos da personalidade reside no
amparo destes pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art.
1º, III, CRFB).
Nesse
mesmo sentido há entendimento do STJ:
Conforme
assinalado por esta Corte na Sentença Estrangeira n.2.149/IT, "a
jurisprudência brasileira vem admitindo a retificação do registro civil de
transexual, a fim de adaptar o assento de nascimento à situação decorrente da
realização de cirurgia para mudança de sexo".( Processo SE 004179 Relator(a)
Ministro CESAR ASFOR ROCHA, Data da Publicação 15/04/2009).
Direito
civil. Recurso especial. Transexual submetido à cirurgia de redesignação
sexual. Alteração do prenome e designativo de sexo. Princípio da dignidade da
pessoa humana. - Sob a perspectiva dos princípios da Bioética - de
beneficência, autonomia e justiça -, a dignidade da pessoa humana deve ser
resguardada, em um âmbito de tolerância, para que a mitigação do sofrimento
humano possa ser o sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de
salvaguardar o bem supremo e foco principal do Direito: o ser humano em sua
integridade física, psicológica, socioambiental e ético-espiritual. - A
afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a
realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os
atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o
transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade
sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e
que se reflete na sociedade. - A falta de fôlego do Direito em acompanhar o
fato social exige, pois, a invocação dos princípios que funcionam como fontes
de oxigenação do ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa
humana - cláusula geral que permite a tutela integral e unitária da pessoa, na
solução das questões de interesse existencial humano. - Em última análise,
afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira
identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em
respeito à pessoa humana como valor absoluto. - Somos todos filhos agraciados
da liberdade do ser, tendo em perspectiva a transformação estrutural por que
passa a família, que hoje apresenta molde eudemonista, cujo alvo é a promoção de
cada um de seus componentes, em especial da prole, com o insigne propósito
instrumental de torná-los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e
afirmar a sua dignidade como pessoa humana. - A situação fática experimentada
pelo recorrente tem origem em idêntica problemática pela qual passam os
transexuais em sua maioria: um ser humano aprisionado à anatomia de homem, com
o sexo psicossocial feminino, que, após ser submetido à cirurgia de
redesignação sexual, com a adequação dos genitais à imagem que tem de si e
perante a sociedade, encontra obstáculos na vida civil, porque sua aparência
morfológica não condiz com o registro de nascimento, quanto ao nome e
designativo de sexo. - Conservar o "sexo masculino" no assento de
nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das
realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do
transexual redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a
manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito
de viver dignamente. - Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de
redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto,
motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil, e a
fim de que os assentos sejam capazes de cumprir sua verdadeira função, qual
seja, a de dar publicidade aos fatos relevantes da vida social do indivíduo,
forçosa se mostra a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser
alterado seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino,
pelo qual é socialmente reconhecido. - Vetar a alteração do prenome do
transexual redesignado corresponderia a mantê-lo em uma insustentável posição
de angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a dignidade da
pessoa humana assegurada pela Constituição Federal. No caso, a possibilidade de
uma vida digna para o recorrente depende da alteração solicitada. E, tendo em
vista que o autor vem utilizando o prenome feminino constante da inicial, para
se identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguido do
sobrenome familiar, conforme dispõe o art. 58 da Lei n.º 6.015/73. - Deve,
pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas
dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da
intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social
estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização
afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do
designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão
importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento,
uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar. - Assegurar ao transexual
o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em
promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que
ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica.
Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis,
sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua
autonomia privada em patamar de igualdade para com os demais integrantes da
vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social
do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos,
frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna. - De posicionamentos herméticos,
no sentido de não se tolerar "imperfeições" como a esterilidade ou
uma genitália que não se conforma exatamente com os referenciais científicos,
e, consequentemente, negar a pretensão do transexual de ter alterado o
designativo de sexo e nome, subjaz o perigo de estímulo a uma nova prática de
eugenia social, objeto de combate da Bioética, que deve ser igualmente
combatida pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto
no século passado. Recurso especial provido. ( REsp 1008398/SP Relator(a)
Ministra NANCY ANDRIGHI, DJ 15/10/2009).
REGISTRO
PÚBLICO. MUDANÇA DE SEXO. EXAME DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE
EXAME NA VIA DO RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SUMULA N.
211/STJ. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO. DECISÃO JUDICIAL.
AVERBAÇÃO. LIVRO CARTORÁRIO. 1. Refoge da competência outorgada ao Superior
Tribunal de Justiça apreciar, em sede de recurso especial, a interpretação de
normas e princípios de natureza constitucional. 2. Aplica-se o óbice previsto
na Súmula n. 211/STJ quando a questão suscitada no recurso especial, não
obstante a oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pela Corte a
quo. 3. O acesso à via excepcional, nos casos em que o Tribunal a quo, a
despeito da oposição de embargos de declaração, não regulariza a omissão
apontada, depende da veiculação, nas razões do recurso especial,
de ofensa ao art. 535 do CPC. 4. A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da
Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha
autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por
apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. 5. Não
entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa
postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a
prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física,
impedindo, assim, a sua integração na sociedade. 6. No livro cartorário, deve
ficar averbado, à margem do registro de prenome e de sexo, que as modificações
procedidas decorreram de decisão judicial. 7. Recurso especial conhecido em
parte e provido. ( REsp 737993/MG Relator(a) Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA,
DJ 10/11/2009).
Deter-se
o julgador a uma codificação generalista, padronizada, implica retirar-lhe a
possibilidade de dirimir a controvérsia de forma satisfatória e justa,
condicionando-o a uma atuação judicante que não se apresenta como correta para
promover a solução do caso concreto, quando indubitável que, mesmo inexistente
um expresso preceito legal sobre ele, há que suprir as lacunas por meio dos
processos de integração normativa, pois, atuando o juiz supplendi causa, deve
adotar a decisão que melhor se coadune com valores maiores do ordenamento
jurídico, tais como a dignidade das pessoas. Sendo assim, sem perder de vista
os direitos e garantias fundamentais expressos da Constituição de 1988,
especialmente os princípios da personalidade e da dignidade da pessoa humana e,
levando-se em consideração o disposto nos arts. 4º e 5º da Lei de Introdução ao
Código Civil, entendo que deve ser deferida a mudança do sexo (de
"masculino" para "feminino") que consta do registro de
nascimento, adequando-se documentos e, logo, facilitando a inserção social e
profissional. (Processo REsp 876672 Relator(a) Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA
Data da Publicação 05/03/2010.)
Há também
vasta Jurisprudência deste egrégio Tribunal:
APELAÇÃO
CÍVEL. ALTERAÇÃO DE PRENOME. EXPOSIÇÃO AO RIDÍCULO. DESIGNAÇÃO DE SEXO OPOSTO.
POSSIBILIDADE. A atribuição de nome que designe pessoa do sexo oposto à do
portador causa constrangimentos, devendo ser autorizada a sua alteração para
outro mais comum e que designe pessoas do sexo de quem o detém. Recurso
provido. (Apelação: 1.0342.06.078478-8/001(1), Relatora: Des. (a) HELOISA
COMBAT)
RETIFICAÇÃO
DE REGISTRO DE NASCIMENTO -TRANSEXUAL SUBMETIDO À CIRURGIA DE
TRANSGENITALIZAÇÃO - ALTERAÇÃO DO PRENOME E DESGINATIVO DE SEXO - PRINCÍPIO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PEDIDO JULGADO PARCIALMENTE PROCEDENTE - RECURSO
PROVIDO ''- Conservar o 'sexo masculino' no assento de nascimento do
recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades
psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual
redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o
recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver
dignamente. - Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação
sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto, motivo apto a
ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil, e a fim de que os
assentos sejam capazes de cumprir sua verdadeira função, qual seja, a de dar
publicidade aos fatos relevantes da vida social do indivíduo, forçosa se mostra
a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser alterado seu assento
de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente
reconhecido''. (REsp 1008398/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma,
julgado em 15/10/2009, DJe 18/11/2009). (Apelação: 1.0024.09.672096-6/001(1),
Relator: Des. (a) ALVIM SOARES)
Também em
outros Estados este entendimento tem se solidificado:
TJRS. 1.
Processo civil. 2. Registro público. 3. Registro civil. Assento de nascimento.
Retificação. - alteração de prenome. Transexualismo. - admissibilidade. -
alteração de sexo. - deferimento do pedido. 4. Juiz. Decisão da lide. - lacuna
ou obscuridade. Aplicação dos princípios gerais do direito e regras de
estatutos similares. - analogia. Aplicação. 5. Intervenção cirúrgica. Alteração
de sexo. Efeitos. 6. Direito individual. Direito à identidade pessoal.
Considerações sobre o tema. 7. Transexual. Alteração de nome. Identidade
sexual. Registros Públicos 8. Caso Rafaela. (Apelação cível nº 593110547. Relator:
Luiz Gonzaga Pila Hofmeister. Porto Alegre, 10 de março de 1994).
TJSP.
Registro civil - Pedido de alteração do nome e do sexo formulado por transexual
primário operado - Desatendimento pela sentença de primeiro grau ante a
ausência de erro no assento de nascimento - Nome masculino que, em face da
condição atual do autor, o expõe a ridículo, viabilizando a modificação para
aquele pelo qual é conhecido (Lei n. 6015/73, artigo 55, parágrafo único,
combinado com artigo 109) - Alteração do sexo que encontra apoio no artigo 5º,
X, da Constituição da República - Recurso provido para se acolher a pretensão.
É função da jurisdição encontrar soluções satisfatórias para o usuário, desde
que não prejudiquem o grupo em que vive, assegurando a fruição dos direitos
básicos do cidadão. (Apelação Cível nº 165.157-4, da Quinta Câmara de Direito
Privado. Relator: Boris Kauffmann. São Paulo, 22 de março de 2001).
TJRJ.
Apelação. Registro civil. Retificação do registro de nascimento em relação ao
sexo. Passando, a pessoa portadora de transexualismo, por cirurgia de mudança
de sexo, que importa na transmutação de suas características sexuais, de ficar
acolhida a pretensão de retificação do registro civil, para adequá-lo à
realidade existente. A constituição morfológica do individuo e toda a sua
aparência sendo de mulher, alterado que foi, cirurgicamente, o seu sexo,
razoável que se retifique o dado de seu assento, para "feminino", no
registro civil. O sexo da pessoa, já com o seu prenome mandado alterar para a
forma feminina, no caso concreto considerado, que é irreversível, deve ficar
adequado, no apontamento respectivo, evitando-se, para o interessado,
constrangimentos individuais e perplexidade no meio social. As retificações no
registro civil são processadas e julgadas perante o Juiz de Direito da
Circunscrição competente, que goze da garantia da vitaliciedade, e mediante
processo judicial regular. A decisão monocrática recorrida não contém nulidade
insanável. Preliminares rejeitadas. Recurso, quanto ao mérito, provido, para
ficar modificado, parcialmente, o julgado de 1º grau. (Apelação Cível nº
2002.001.16591, da Décima Sexta Câmara Cível. Relator: Ronald Valladares. Rio
de Janeiro, 25 de março de 2003).
Enfim,
trata-se de uma realidade que aí está e não pode ser desprezada, devendo ser
considerada em toda a sua plenitude, para que não restem meias soluções e meias
medidas. Se a medicina pode buscar e aplicar soluções nesses casos, não pode o
Judiciário negar o seu implemento final, com a positivação no documento da
situação que já existe de fato.
Decidir
pela reforma da sentença e manter a designação do autor como sendo do sexo
masculino imporia barreira para a realização da sua identidade sexual. Afinal,
seria extremamente humilhante ser reconhecido por um nome que não condiz com
seu gênero sexual.
Faço uma
observação sobre o acerto da sentença, pois o registro deve constar a verdade
dos fatos, nada podendo omitir. A averbação de que a modificação adveio de
ordem judicial visa preservar a realidade fática, de modo a proteger os
interesses de terceiros, dando-lhes a segurança de que as informações
constantes dos registros públicos correspondem à realidade e decorre do
princípio da veracidade, que norteia os registros públicos.
Aliás,
essa modificação por que passou o requerente, com a averbação, vem atender
precisamente a esse princípio da veracidade, resguardando aos que com ele
possam conviver e que não serão induzidos a erro quanto ao seu sexo, visto que
a averbação faz essa ressalva.
Assim, a
determinação de que conste à margem do registro a averbação de que as
modificações referentes ao sexo e ao nome e prenome decorreram de decisão
judicial preserva a veracidade de que goza o registro público. Esta averbação,
ao contrário de demonstrar preconceito, demonstra respeito à condição humana
criada, que não pode ser ocultada, resguardado o sigilo da anotação, nos moldes
de praxe, o que foi determinado pelo MM. Juiz.
O
contrário - deixar de modificar o registro - acarretaria a situação absurda de
deixar constar no registro uma situação de fato que não mais existe.
Ressalto,
ademais, o acerto da sentença, ao determinar que á margem do registro conste a
averbação de que as modificações referentes ao sexo e nome decorreram de
decisão judicial, em respeito aos direitos de terceiros na atualidade ou no
futuro envolvidos, pois o registro deve constar a verdade dos fatos, nada
podendo omitir, em atenção ao PRINCÍPIO DA VERACIDADE. Esta averbação, ao
contrário de demonstrar preconceito, demonstra respeito à condição criada, um
reconhecimento de que há fato científico reconhecido e protegido judicialmente,
que não pode ser ocultado, resguardado o sigilo da anotação, nos moldes de
praxe, mas sempre possibilitando o seu conhecimento a terceiros interessados,
conforme determinado pelo MM. Juiz, que utilizou de cautela e atendeu aos
princípios que regem ao registro público.
Diante do
exposto, nego provimento ao recurso, mantendo, in totum, a sentença prolatada
em primeira instância.
Custas
recursais, ex lege.