Para o advogado
Marcos Alves da Silva, um dos
fundadores do Instituto Brasileiro de Família do Paraná (IBDFAM-PR), a
monogamia não se sustenta como princípio estruturante do estatuto
jurídico da família. Estudo com essa temática foi apresentado por ele
como defesa de tese de doutorado em Direito à Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). A pesquisa recebeu nota máxima da banca, com
louvor. Conforme o estudo, a monogamia presta-se como instrumento de
exclusão de muitas famílias, fato bem documentado por farta
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de
Justiça (STJ). Desse entendimento decorre outro importante: de que
decretar o fim da monogamia como princípio jurídico é tornar as relações
afetivas mais responsáveis. Acompanhe a entrevista com o advogado
Marcos Alves.
O que o leva a propor a superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da família?
Esta pergunta pode ser respondida a partir de duas perspectivas.
Uma diz respeito à motivação ou hipótese que constituiu a base ou o
impulso para pesquisa. A outra se refere ao núcleo da tese, isto é, as
razões que me permitem afirmar que a monogamia não constitui, hoje,
princípio estruturante do estatuto jurídico da família. Parto da
suspeita que o princípio da monogamia presta-se como instrumento de
exclusão para tornar certas pessoas e situações subjetivas
co-existenciais invisíveis ao Direito. Há famílias que existem
sociologicamente, mas sua existência jurídica é negada, gerando graves
injustiças e assim ocorre em atenção ao suposto princípio da monogamia.
Os exemplos da utilização da monogamia como instrumento de exclusão está
presente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do
Supremo Tribunal Federal (STF) de forma abundante. Estes julgados são
analisados na tese. Por outro lado, especialmente pela peculiaridade da
construção dogmática da noção de concubinato no Brasil, a monogamia se
justifica como norma protetora da conjugalidade matrimonializada e
institucionalizada na qual o viés da dominação masculina é inegável. A
concubina, desde os tempos do Brasil Colônia, foi a índia, a negra, a
branca pobre, a moça que não era para casamento... Neste aspecto, a tese
abriu espaço para um amplo diálogo com as ciências sociais. O trabalho
de Bourdieu, por exemplo, tem grande importância para a linha de
argumentação desenvolvida na tese. Esta seria a motivação, a mola
propulsora da pesquisa, isto é, a percepção de que o conceito do
concubinato reforçado pelo art. 1.727 do Código Civil, constitui um
estatuto de exclusão. A tese de que a monogamia não constitui, hoje,
princípio estruturante do estatuto jurídico das famílias, assenta-se em
linha argumentativa que tem como pano de fundo a perspectiva do Direito
Civil-Constitucional. Procuro demonstrar que a monogamia como princípio
não subsiste face aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa
humana, da solidariedade, da igualdade substancial, da liberdade e da
democracia. A monogamia, como norma jurídica, é submetida a um banco de
provas que tem como referencial os princípios constitucionais. A
conclusão é de que a reconfiguração das conjugalidades contemporâneas -
sob o signo da pluralidade das entidades familiares e da potencialização
do exercício da liberdade nas situações subjetivas existenciais não
admitem - é incompatível com um princípio que se prestou à tutela de uma
outra família de natureza marcadamente matrimonializada, patriarcal,
hierárquica, transpessoal, incompatível com o seu redesenho
contemporâneo.
Em sua avaliação, a traição e a infidelidade funcionam como quebra do sistema monogâmico?Não.
Quando, em termos jurídicos, se faz referência à infidelidade está
pressuposto o dever jurídico da fidelidade. Sustento que não existe um
dever jurídico de fidelidade. Creio que a Emenda 66 reforça minha tese.
Só há que se falar em dever jurídico se do seu descumprimento decorrer
uma sanção, uma eficácia jurídica. Caso contrário ele converte-se em um
dever simplesmente moral. O Estado Moderno tornou-se herdeiro de um
grande equívoco. A Igreja chamou a si o poder de regular e controlar a
sexualidade tanto em sua dimensão reprodutiva como erótica. Com as
Revoluções Burguesas, o Estado trouxe a si, sem grande alteração de
fundo, este poder regulatório. Não faz qualquer sentido, atualmente,
que o Estado mantenha a pretensão de regular a sexualidade. Neste campo,
a autonomia privada deve ter a máxima expansão. O Estado somente deve
intervir para tutelar as pessoas que nas relações familiares
encontrem-se em situação de vulnerabilidade. Mas não para cercear a
liberdade das pessoas. O Estado que se afirma democrático não pode impor
a todos os cidadãos um modelo único de família, assim concebido com
base em percepções religiosas. A democracia não deve expandir-se da
praça para a casa. A democratização da intimidade é uma constatação da
vida contemporânea ressaltada por autores como Giddens. Por outro lado, o
Estado é laico. Não é admissível que imponha a todos uma única
concepção de família. O intenso processo de imigração e de comunicação
entre as culturas humanas também é fator que impõe esta reflexão. Sem
esquecer que nenhuma cultura é monolítica. Não há como falar em uma
cultura brasileira. Logo, a efetiva democracia pressupõe a construção de
espaços jurídicos para todos. Esta liberdade somente se instala se o
Estado abster-se da pretensão da regulação totalitária da sexualidade,
que era viável para a os intentos da Igreja Católica à época do Concílio
de Trento. Hoje, não há espaço para esse tipo de pretensão regulatória.
A Emenda Constitucional 66/2010 (Divórcio Direto) afastou
prazos desnecessários, acabou com a discussão da culpa pelo fim do
casamento e suprimiu o instituto da separação judicial. Sua tese se
alinha com o entendimento da superação da culpa pelo fim do enlace
conjugal?
A tese está perfeitamente alinhada com o sentido da reforma operada
pela Emenda Constitucional 66. Esta aparente singela alteração do texto
constitucional, que simplesmente cortou a exigência de observância de
prazo para o divórcio direto, na verdade implicou tremendo câmbio para o
Direito de Família. O direito de não permanecer casado, sem dar
qualquer satisfação ao Estado, foi o que estabeleceu a Emenda 66. A
culpa carregava consigo a ideia de pecado e de controle deste, primeiro
pela Igreja e depois pelo Estado. Depois da Emenda 66, perdeu sentido
falar-se em dever jurídico de fidelidade.
A superação da monogamia, por sua vez, enaltece o princípio da responsabilidade nas entidades familiares?
Não há dúvida que sim. Esta é uma das linhas da tese. À medida
que mulheres, designadas concubinas, saem da ocultação a elas impostas
pelo véu da ficção jurídica ancorada no princípio da monogamia, há
necessária responsabilização daqueles que participam de dois ou mais
núcleos familiares. O princípio da monogamia, que entendo superado,
desprestigiava o princípio constitucional da pluralidade de entidades
familiares. Defendo a construção de modelos jurídicos autóctones de
entidades familiares. O problema é que o matrimônio foi tomado sempre
como referência para a concepção do novo. Este procedimento tem se
revelado
inadequado. Como a monogamia era tomada como princípio na família
matrimonializada, por uma analogia equivocada, transferiu-se a noção
para as demais entidades familiares. Esta transferência mostra-se
impertinente também pelo fato de que retira responsabilidades, visto que
as famílias simultâneas, sendo desconsideradas, nada exigem
juridicamente especialmente do homem.
Sua tese de doutorado obteve nota máxima e foi aprovada com
louvor pela banca da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Entende que seja um reconhecimento a uma proposta para a qual a
sociedade se encaminha?Creio que a tese é construída no
olho do furacão, isto é, no centro das mudanças que estão se operando.
Obviamente haverá resistência, haverá reação à tese, mas creio que por
outro lado ela já vem sendo assimilada. Recente decisão do STF em
relação a duas uniões estáveis simultâneas, sendo uma hetero e outra
homossexual, agora, decisão recente do Supremo em um agravo em sede de
recurso especial, entendeu como repercussão geral a possibilidade da
existência simultânea de uma união homoafetiva e outra união estável
heterossexual. Ora, quando se admite uma união estável paralela a outra,
automaticamente esse princípio da monogamia está rompido, quebrado. De
certa forma, aquilo que se sustenta na tese tem recepção no próprio STF.
Como vê a relação entre a mudança de costumes da sociedade e a resposta que o Judiciário lhe dá atualmente?
Eu entendo que o Judiciário, comparado com o Legislativo, tem dado
respostas muito mais condizentes com as alterações das concepções,
especialmente das concepções e costumes relativos às relações
familiares, do que propriamente o Legislativo. A grande resistência às
alterações, às mudanças, está presente no poder Legislativo. O
Judiciário, por exemplo, tem dado mostras de uma conexão muito estreita
com a sociedade. Recentemente, a decisão do Supremo Tribunal Federal
referente às relações homoafetivas foi uma demonstração cabal disso. Do
reconhecimento da união estável, da leitura da união homoafetiva como
união estável, foi um exemplo nesse sentido. Mas, obviamente, mesmo
dentro do Judiciário, há resistências. Mas eu creio que essas
resistências dentro do Poder Judiciário são menores do as resistências
existentes no Poder Legislativo. No Poder Legislativo, existem algumas
bancadas muito reacionárias que são expressão de determinados segmentos
da sociedade que resistem muito fortemente às mudanças em relação ao
Direito de Família. Essas mudanças são expressão das novas concepções
vividas na sociedade, mas a resistência a elas é muito maior no
Legislativo do que no Judiciário.
As premissas de seu estudo se aplicam às relações homoafetivas?
Como me referi anteriormente, recente decisão do STF reconheceu a
possibilidade de uniões paralelas, sendo uma hetero e a outra
homossexual, com pessoa que integrava ambas as relações. Respondendo à
questão, talvez o fato mais importante diz respeito à quebra de um
paradigma. As relações homoafetivas quebram um paradigma que estava
fundado no matrimônio, no casamento. Então, neste sentido, a afirmação
da pluralidade de entidades familiares numa sociedade que é plural e que
deve ter respeitada essa pluralidade por questão de princípio
constitucional e que a superação de toda marginalização ela também
atende ao princípio da solidariedade constitucional. Nesse sentido, as
relações homoafetivas têm uma função como que didática ou pedagógica no
sentido de que a quebra de paradigma ganha nelas mais visibilidade, mais
expressão. Então de tal forma que a tese tem ampla ampliação nas
relações homoafetivas.
Acredita que conhecimentos como os contidos em sua
dissertação de doutorado demoram muito a ser assimilados pelos
operadores do Direito?
Veja bem, a princípio o enunciado da tese pode causar surpresa e
perplexidade até em alguns meios quando se diz a "Superação da monogamia
como princípio estruturante do estatuto jurídico da família". Este
enunciado talvez cause perplexidade num primeiro momento. Mas ao se
demonstrarem as razões da tese, e ao se confrontar a regra da monogamia
com os princípios constitucionais, parece já ser hoje esta linha de
entendimento algo que é perfeitamente acolhido pela sociedade. No
sentido de que cada vez mais há uma compreensão de que nós estamos,
primeiro, num estado laico. Sendo laico o estado, não há a justificativa
de uma regra ou compreensão religiosa, ou seja, de ordem ética ou
filosófica de um determinado grupo para que ela se estenda
necessariamente como norma estatal a todas as pessoas, como uma invasão
indevida do estado nas relações interprivadas, especialmente nas
situações subjetivas existenciais. Especialmente quando esta regra se
presta como estatuto de exclusão de determinadas pessoas à proteção do
estado. Se aqueles que estão numa condição de vulnerabilidade é que
devem ser protegidos, especialmente esses, pela regra da monogamia, são
aqueles que são desatendidos pelo estado. Então, parece-me, que há,
hoje, esse entendimento. Todavia, o preconceito, aquilo que já está
assentado já quase que secularmente em relação ao princípio da
monogamia, então, por causa disso, no primeiro momento há uma
resistência. Mas eu creio que a aceitabilidade da tese é algo necessário
no sentido de que a sociedade está preparada para uma mudança de
concepção. Agora, vários setores do chamado mundo jurídico, diversos
tribunais, ainda resistem com muita força à ideia da superação da
monogamia.