A SEGUIR TEXTO DE AUTORIA DO PROFESSOR FLÁVIO TARTUCE ACERCA DA NOVA MODALIDADE DE USUCAPIÃO DECORRENTE DO ABANDONO DO LAR COMUM:
A USUCAPIÃO
ESPECIAL URBANA POR ABANDONO DO LAR CONJUGAL.
Flávio Tartuce.
Doutor em Direito Civil pela USP.
Mestre em Direito Civil
Comparado pela PUCSP.
Professor da EPD e da Rede de Ensino LFG.
Advogado e consultor jurídico.
Autor da Editora Método.
A Lei 12.424, de 16 de junho de 2011, inclui no
sistema uma nova modalidade de usucapião, que pode ser denominada como usucapião
especial urbana por abandono do lar. Apesar da utilização do termo usucapião familiar por alguns juristas,
entende-se ser melhor a adoção da expressão destacada, para manter a unidade
didática, visando diferenciar a categoria da usucapião especial rural ou
agrária - que também tem uma conotação familiar
-, da usucapião ordinária, da usucapião extraordinária, da usucapião especial
indígena e da usucapião especial urbana coletiva.
Pois bem, vejamos a redação do novo comando,
constante do art. 1.240-A do CC/2002:
“Art. 1.240-A. Aquele que
exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com
exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros
quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que
abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família,
adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro
imóvel urbano ou rural.
§ 1o O direito previsto no caput não será
reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez”.
O instituto traz algumas semelhanças em relação à
usucapião urbana que já estava prevista no sistema (art. 1.240 do CC/2002 e
art. 183 da CF/1988), e que pode ser agora denominada como usucapião especial urbana regular.
De início, cite-se a metragem de 250 m2 , que é exatamente a
mesma, procurando o legislador manter a uniformidade legislativa. Isso, apesar
de que em alguns locais a área pode ser tida como excessiva, conduzindo à usucapião
de imóveis de valores milionários. Ato contínuo, o novo instituto somente pode
ser reconhecido uma vez, desde que o possuidor não tenha um outro imóvel urbano
ou rural, o que está em sintonia com a proteção da moradia como fator do piso mínimo de direitos ou patrimônio mínimo (art. 6º da CF/1988).
A principal novidade é a redução
do prazo para exíguos dois anos, o que faz com que a nova categoria seja aquela
com menor prazo previsto, entre todas as modalidades de usucapião, inclusive de
bens móveis (o prazo menor era de três anos). Deve ficar claro que a tendência
pós-moderna é justamente a de redução dos prazos legais, eis que o mundo
contemporâneo exige e possibilita a tomada de decisões com maior rapidez.
O abandono do lar é o fator
preponderante para a incidência da norma, somado ao estabelecimento da moradia
com posse direta. O último requisito não é novo no sistema, pois já estava
previsto para a usucapião especial rural
ou agrária, pela valorização de uma
posse qualificada pela posse-trabalho
(art. 191 da CF/1988 e art. 1.239 do CC/2002).
O comando
pode atingir cônjuges ou companheiros, inclusive homoafetivos, diante do amplo
reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, equiparada à união
estável. Fica claro que o instituto tem
incidência restrita entre os componentes da entidade familiar, sendo esse o seu
âmbito inicial de aplicação.
A nova categoria merece elogios,
por tentar resolver inúmeras situações que surgem na prática. É comum que o
cônjuge que tome a iniciativa pelo fim do relacionamento abandone o lar,
deixando para trás o domínio do imóvel comum. Como geralmente o ex-consorte não
pretende abrir mão expressamente do bem, por meio da renúncia à propriedade, a
nova usucapião acaba sendo a solução. Consigne-se que em havendo disputa,
judicial ou extrajudicial, relativa ao imóvel, não ficará caracterizada a posse
ad usucapionem, não sendo o caso de subsunção do preceito.
Eventualmente, o cônjuge ou companheiro que abandonou o lar pode notificar o
ex-consorte anualmente, a fim de demonstrar o impasse relativo ao bem,
afastando o cômputo do prazo.
No que concerne à questão de
direito intertemporal, parece correto o entendimento já defendido por Marcos Ehrhardt
Jr., no sentido de que “O prazo para exercício desse novo direito deve ser
contado por inteiro, a partir do início da vigência da alteração legislativa,
afinal não se deve mudar as regras do jogo no meio de uma partida”. [1]
A conclusão tem relação direta com a proteção do direito adquirido, retirada do
art. 5º, XXXVI, da Constituição e do art. 6º da Lei de Introdução.
Outra questão que merece ser enfrentada refere-se à
possibilidade de usucapião do bem em condomínio entre os cônjuges, tema
debatido há tempos pela doutrina e pela jurisprudência. Como se percebe pela
leitura do novo dispositivo, a categoria somente se aplica aos imóveis que
sejam de propriedade de ambos os consortes e não a bens particulares de apenas
um deles.
Várias são as decisões apontando que, havendo
tolerância de uso por parte dos demais condôminos, não há que se falar em
usucapião, em regra. Como
exceção, surgem os casos de posse própria, em que se abre a possibilidade da
usucapião (por todos: “Usucapião.
Condomínio. 1. Pode o condômino usucapir, desde que exerça posse própria
sobre o imóvel, posse exclusiva. Caso, porém, em que o condomínio exercia a
posse em nome dos demais condôminos. Improcedência da ação (Código Civil, arts.
487 e 640). 2. Espécie em que não se aplica o art. 1.772, § 2.º, do CC. 3.
Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp 10.978/RJ, Rel. Min. Nilson Naves,
3.ª Turma, j. 25.05.1993, DJ
09.08.1993, p. 15.228).
Do ano de 1999, cite-se decisão
do Superior Tribunal de Justiça no mínimo inovadora, cujo relator foi o então
Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Aplicando a boa-fé objetiva, particularmente a supressio,
que é a perda de um direito ou de uma posição jurídica pelo seu não exercício
no tempo, o julgado possibilitou, de forma indireta, a usucapião de uma área comum
em um condomínio edilício – parte do corredor que dava acesso a alguns
apartamentos. Essa foi a conclusão, mesmo havendo, aparentemente, um ato de
mera tolerância por parte do condomínio. Vejamos a ementa do acórdão:
“Condomínio. Área comum. Prescrição. Boa-fé. Área
destinada a corredor, que perdeu sua finalidade com a alteração do projeto e
veio a ser ocupada com exclusividade por alguns condôminos, com a concordância
dos demais. Consolidada a situação há mais de vinte anos sobre área não
indispensável à existência do condomínio, é de ser mantido o status quo.
Aplicação do princípio da boa-fé (supressio). Recurso conhecido e
provido” (STJ, REsp 214.680/SP, Rel.
Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4.ª Turma, j. 10.08.1999, DJ 16.11.1999, p. 214).
O entendimento consubstanciado no julgado parece ser
a tendência seguida pela nova modalidade de usucapião, na menção à propriedade
dividida pelos cônjuges ou companheiros.
Por certo, vários debates jurídicos
surgirão a respeito dessa nova modalidade de usucapião especial urbana, que
representa, a meu ver, interessante inovação, com grande amplitude social. Para
solucionar os problemas é que existem os intérpretes, os advogados, os
julgadores, os professores, os doutrinadores, os profissionais da área jurídica
em geral. Aceitemos
os bônus e os ônus, enfrentando os desafios que virão.
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