terça-feira, 7 de junho de 2016

TEMPO É DINHEIRO: OS LUCROS CESSANTES DA PROSTITUTA




Certa vez, em sala de aula, fui abordado por aluno que curiosamente me perguntou acerca da possibilidade jurídica da prostituta ser indenizada por lucros cessantes, quando em razão de algum ato ilícito, esta fosse impedida de prestar seus serviços, e consequentemente, de auferir renda.

Após os risos e as piadas, refletimos sobre o caso e analisamos a questão sob a ótica da jurisprudência. Naquela oportunidade discutimos algumas decisões judiciais que entendiam ser impossível pedir indenização por lucros cessantes de atividade ilícitas. Isto por que, tradicionalmente, o ato ilícito caracterizar-se-ia como a conduta humana violadora não apenas da lei em sentido estrito, mas também da moral e dos bons costumes. 

Mas qual a abrangência da ilicitude numa sociedade plural como a que vivemos hoje? 

Nas palavras do Professor Nelson Rosenvald:

"Ao conceder habeas corpus (HC 211.888) a uma garota de programa acusada de roubo, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) pioneiramente considerou que profissionais do sexo têm direito a proteção jurídica e que seria possível cobrar em juízo o pagamento por esse tipo de serviço. Os ministros concluíram que a conduta da acusada, ao tomar à força um cordão folheado a ouro do cliente que não quis pagar pelo sexo, não caracterizou roubo, mas o crime de exercício arbitrário das próprias razões previsto no artigo 345 do Código Penal, cuja pena máxima é de um mês de detenção. 

Em seu voto, o Ministro Rogério Schietti Cruz lembrou que o Código Brasileiro de Ocupações de 2002, do Ministério do Trabalho, menciona a categoria dos profissionais do sexo, o que “evidencia o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de que a atividade relacionada ao comércio sexual do próprio corpo não é ilícita e, portanto, é passível de proteção jurídica”. Além disso, afirmou, a Corte de Justiça da União Europeia reputa a prostituição voluntária uma atividade econômica lícita. Essas considerações, disse o relator, “não implicam apologia ao comércio sexual, mas apenas o reconhecimento, com seus naturais consectários legais, da secularização dos costumes sexuais e da separação entre moral e direito”. Segundo ele, o processo demonstra que a garota de programa pensava estar exercendo uma pretensão legítima, já que não recebeu os R$ 15,00 prometidos em acordo verbal pelo cliente.

A recente decisão deve ser debatida em uma perspectiva ainda mais ampla, começando pelo viés moral. Na perspectiva tradicional, o compromisso de pagar por sexo não seria passível de cobrança judicial, pois a prostituição não seria atividade a ser estimulada pelo Estado. Alguns tendem até a criminalizá-la. Nessa linha, tramita no Congresso o Projeto de Lei 377/2011, de autoria do Deputado Federal João Campos. acrescendo ao Código Penal o tipo da Contratação de serviço sexual: “Art. 231-A. Pagar ou oferecer pagamento a alguém pela prestação de serviço de natureza sexual: Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem aceita a oferta de prestação de serviço de natureza sexual, sabendo que o serviço está sujeito a remuneração”. Ora, criminalizar essa atividade apenas favorece quem a explora no topo da cadeia alimentar, obtendo lucros com o comércio do corpo alheio. O dedo incriminador é um estorvo. Numerosos são os que nos pretendem tutelar, transformando a esfera intima do adulto em um picadeiro de despóticos desejos frustrados. Renunciamos tanto às obscenidades quanto ao moralismo. Face à finalidade óbvia de sua existência, a prostituição não se apresenta à meia luz, nem ambígua ou clandestina. E é por esse motivo que em meio a uma maré de sexualidade, transformou-se em bastião do sexo, há muito como tal reconhecido.

Em sociedades plurais e democráticas substituímos a subjetividade arbitrária da moral por uma ética calcada em harmonização de direitos fundamentais. Sendo a pessoa plenamente capaz e autodeterminada, prevalece o exercício de sua intimidade nas escolhas existenciais, com o consequente afastamento da “moral estatal” heterônoma. A balança argumentativa só penderá para a repressão da atividade, quando praticada por sujeito incapaz, vulnerável, ou submetido à coação (o moderno leilão de escravas é eletrônico, cafetões locais adquirem mulheres de atacadistas de outros países e consumidores varejistas requisitam a prostituta de sua escolha). Afora tais situações intoleráveis, não mais se justifica a sanção moral à prostituição, que embasou a noção civilista do contrato de prestação de serviços sexuais como uma obrigação natural, na qual haveria o débito desprovido de responsabilidade. Ao contrário de uma obrigação civil, perfeitamente dotada de exigibilidade, a titularidade de um crédito derivado do “comércio corpóreo” despojaria o credor da pretensão de constranger judicialmente o consumidor inadimplente. O único efeito de uma obrigação natural é a retenção por parte do credor dos valores espontaneamente pagos, pois o devedor não poder repetir um pagamento que ainda era devido, não obstante inexigível. Porém, ao contrário do que ocorre com atividades delituosas organizadas, onde residiria a expressa vedação a essa atividade e a consequente ilicitude desse negócio jurídico? O desrespeito ao fluido conceito jurídico indeterminado dos “bons costumes” seria uma justificativa hábil a sancionar esse contrato como inválido?

Muito pelo contrário, a fronteira entre o lícito e o ilícito é transposta apenas na violação formal (art. 186, CC) ou material (art. 187, CC) de uma norma. Não se atribui antijuridicidade a um comportamento individual que traduza o livre exercício de um trabalho respaldo pelo intuito de promoção da trajetória pessoal. Justamente por fugir ao lugar comum do modelo estatal punitivo de comportamentos socialmente desviantes, mostrava-se elogiável o Projeto de Fernando Gabeira no sentido de tornar exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual pela pessoa que os tivesse prestado ou que tivesse permanecido disponível para os prestar (quer tenha sido efetivamente solicitada a prestá-los ou não). É evidente que aqueles que “não perdem a piada” alegariam que uma ação de cobrança poderia expor a privacidade das partes, se o devedor alegasse uma espécie de “exceção de contrato não cumprido”, ao fundamento de que a(o) prostituta(o) não teria cumprido a sua obrigação de satisfazer o cliente. O que levaria mesmo a uma bisonha discussão se haveria aí obrigação de meio ou de resultado! Fato é, que diferentemente da saudável abolição da discussão de culpa no divórcio - pela evidente violação a uma relação que repousa no afeto - a prostituição é um vínculo exclusivamente negocial, cuja discussão de fundo apenas se eliminaria pela via da abstração conferida por um título de crédito. Infelizmente, o Projeto 98/2003 foi arquivado. Todavia, tramita no congresso o Projeto de Lei “Gabriela Leite”, dispondo ser “juridicamente exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual a quem os contrata” e que “a obrigação de prestação de serviço sexual é pessoal e intransferível” (Projeto 4.211/12, Deputado Jean Wyllys).

Nos tempos atuais qualquer coisa de valor se encontra a venda no mercado global: drogas ilegais, espécies ameaçadas, seres humanos como mercadoria destinada à exploração sexual e profissional, ideias pirateadas, medicamentos falsificados, cadáveres e órgãos para transplantes, metralhadoras e lançadores de foguetes. E o mais grave, como demonstra o prestigiado autor Moisés Naím, (“Ilícito”- Ed. Jorge Zahar), é a existência de uma enorme área cinzenta entre as transações legais e ilegais. Não sabemos com certeza a quem nossa compra beneficia, o que nossos investimentos apoiam e que conexões financeiras podem ligar o nosso trabalho e consumos a objetivos e práticas que abominamos. É uma ilusão a ideia de que o comércio ilícito é ainda um fenômeno marginal e reservado ao campo do direito penal. Enquanto lamentavelmente alguns insistem na moral “vitoriana” do combate à prostituição, a sociedade do século XXI passivamente assiste o ostensivo avanço de redes ilícitas sobre empresas, partidos políticos, governos, parlamentos, grupos de comunicação e tribunais, que desvirtuam o interesse público em nome de interesses inconfessáveis.


FONTE: https://www.facebook.com/Nelson-Rosenvald-1407260712924951/?fref=ts

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Eduardo Couture

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