Ao menos
até o atual estágio da ciência genética, todas as pessoas são filhas de uma
mulher. Todos são gerados no ventre de uma pessoa do sexo feminino. Esta sempre
foi uma verdade tão evidente que é latina a expressão: mater semper certa est.
A mãe é sempre certa.
Quanto à
paternidade, a verdade nunca foi tão evidente, ou melhor, tão aparente. Mas a
necessidade de se certeza do vínculo de filiação paterna impôs uma série de
pressuposições de modo a chegar-se a uma presunção. Para dizer que o pai sempre
é o marido da mãe, foi preciso fazer as mulheres acreditarem que a virgindade
tinha valor. Ou seja, manter íntegro o hímen lhe garantia a condição de pessoa
séria e honesta. Pureza, castidade e recato davam às jovens a garantia de que
iriam conseguir subir ao altar. Sempre foi este o dado que as diferenciava das
chamadas mulheres de "vida fácil". Qualidade que nunca ninguém
conseguiu entender muito o porquê.
A tarefa
delas, aliás, sempre foi das mais áridas: assegurar prazer sexual sem qualquer
contra partida, a não ser de natureza financeira. Mas certamente pagavam um
preço muito caro: viver à margem da sociedade. Recebiam toda a sorte de
adjetivações para lá de desrespeitosas e, claro, não tinham o direito de amar.
Não podiam sequer embalar o sonho de casar com quem se deliciava com suas
carícias. Na eventualidade de ocorrer gravidez - algo muito frequente antes do
surgimento dos métodos contraceptivos - era impositivo que abortassem. Afinal,
o filho jamais poderia ter um pai, um nome, uma família. Esta marginalização,
aliás, era consagrada legalmente, o que deixava os homens em situação para lá
de confortável. Os filhos havidos fora do casamento eram considerados
ilegítimos, bastardos. Eram condenados a serem filhos da puta.
A
necessidade de as moças casarem virgens era imposta pelos costumes. O lençol
manchado de sangue era exposto no balcão da casa, motivo de júbilo para as
famílias dos noivos. Também nesta seara havia a interferência da lei. A
ausência da virgindade configurava erro essencial de pessoa e garantia ao
marido o direito de pedir a anulação do casamento.
Mas havia
mais um ingrediente para garantir a certeza da paternidade. A mulher casada
precisava manter uma postura de recato e seriedade. Seu lugar era o lar, para
dirigir a casa, criar os filhos e cuidar do marido. Este se tornava o seu
senhor. A lei o considerava o cabeça do casal, o chefe da sociedade conjugal.
Mas tinha mais. Por décadas, a mulher ao casar, perdia a plena capacidade, ou
seja, restava meio idiota. Nada podia fazer sem a assistência do marido. Sequer
podia trabalhar "fora" sem sua expressa autorização.
Assim
ficava fácil. Se o homem casava a com uma virgem, que nada podia fazer sem a
sua aquiescência e a mantinha refém no lar, claro que o filho que ela tivesse
só poderia ser filho dele. Esta ilação transformou-se em presunção legal. Até
hoje o marido pode, sem a presença da esposa, registrar o filho como seu. Basta
comparece ao cartório acompanhado de duas testemunhas munido de uma certidão de
casamento e da declaração de nascido vivo fornecido pela maternidade. Já a mãe
não pode registrar o filho em nome do marido se ele não se fizer presente no
cartório.
A
possibilidade de registro pelo pai existe no casamento, mas não na união
estável. O companheiro, ainda que tenha em mãos um contrato de convivência ou
até uma sentença declaratória de união estável, não pode proceder ao registro
do filho. Nada disso basta. Já o casado nem precisa comprovar a concordância da
mãe para tornar-se pai. A explicação é para lá de bizarra: no casamento existe
dever de fidelidade enquanto na união estável o compromisso é só de lealdade.
De qualquer modo, esta esquisita presunção nem é de paternidade, mas de
fidelidade da mulher ao seu marido.
Mas se
tudo isso era necessário pela dificuldade em saber quem é o pai de alguém - até
porque, em nome da moral e dos bons costumes relações sexuais acontecem a
descoberto de testemunhas - dois acontecimentos não permitem que persistam
estas práticas. Primeiro foi o surgimento da possibilidade de o vínculo parental
ser afirmado com alto grau de certeza. A partir da identificação do código
genético, através do exame do DNA, nada existe de mais seguro para dissipar
qualquer dúvida do genitor.
Esta
descoberta teve efeito de outra ordem. Sepultou de vez o tabu da virgindade,
que perdeu significado como elemento qualificador da mulher. Sua honradez não
mais depende da integridade e seu hímen. De outro lado, nas ações
investigatórias de paternidade, a alegação de que a mãe poderia ter tido
contato sexual com mais de uma pessoa - argumento conhecido pela feia expressão
exceptio plurium concubentium - deixou de servir de justificativa para a
improcedência da ação. A vida sexual da mãe não cabe ser invocada como meio de
defesa.
O outro
acontecimento revolucionário foi o surgimento das técnicas de reprodução
assistida. As pessoas não mais são frutos exclusivamente de uma relação sexual
entre um homem e uma mulher. Bancos de sêmen, fecundação in vitro, gestação por
substituição fez pluralizarem os vínculos parentais. Hoje em dia para alguém
ser pai ou ser mãe não precisa ter um par.
Agora nem
mais a maternidade é certa. Mãe passou a ter adjetivos. Nem sempre a mãe
biológica é a mãe gestacional. E talvez nenhuma delas seja de fato a mãe
registral. Ou seja, mãe não é somente aquela que teve um óvulo fecundado e nem
quem o carregou no ventre por nove meses. Para ser mãe nem é preciso participar
do processo reprodutivo. Mãe é quem deseja ter um filho. É o que basta para ser
reconhecido o direito de registrar como seu o filho que não deu à luz e nem tem
sua carga genética. O mesmo acontece com relação ao pai. Deixou de ser
exclusivamente o marido da mãe.
Assim,
estão sepultadas as presunções de parentalidade. Principalmente a partir do reconhecimento
das uniões homoafetivas, a quem a justiça assegurou acesso ao casamento.
Resolução do Conselho Federal de Medicina autorizou o uso das técnicas de
procriação assistida aos parceiros homossexuais. A persistir tais presunções,
por elementar princípio da igualdade, não é possível impedir que seja
registrado como de ambos, o filho do casal de homens, ou de mulheres. Caso eles
sejam casados, vivam em união estável ou comprovem terem se submetido às
técnicas de reprodução assistida, é o que basta para procederem ao registro da
dupla maternidade ou paternidade.
Não há
forma mais humana, ágil, efetiva e afetiva para que crianças saibam desde
sempre de quem são filhos!
Maria
Berenice Dias
Advogada
especializada em Direito das Famílias
Vice-Presidenta
Nacional do IBDFAM
FONTE: IBDFAM
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